quarta-feira, 7 de abril de 2010

SIMBOLISMO DA PEDRA, por Carlos Dugos


SIMBOLISMO DA PEDRA
Correspondências maçónico-alquímicas
Carlos Dugos

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RESUMO
Na tradição ocidental, o simbolismo da pedra constitui um tema maior, sobretudo nas vias múltiplas da Arte Real. Às várias pedras maçónicas, indicadoras de outros tantos graus iniciáticos, correspondem, mais ou menos directamente, os diversos estados da pedra alquímica, ao longo da Obra. Do ponto de vista religioso, o cristianismo apresenta valores semelhantes, fazendo da pedra um elemento simbólico central da doutrina salvífica.
Ao contrário do que frequentemente se crê, tais coincidências não têm origem em processos de adopção, em que símbolos preexistentes são enxertados arbitrariamente numa corrente particular; elas correspondem à coerência de um único repertório simbólico específico, próprio para servir de suporte a uma determinada doutrina e à acção em consequência.
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ESPECIFICIDADE DA ARTE REAL

A Arte Real, nas suas várias modalidades, constitui um código espiritual de conhecimento geminado com um código técnico de acção. O que se sabe reflecte-se directamente no que se faz e o que se vai fazendo reflecte-se directamente no que se vai sabendo.
Deste modo, à Iniciação Real estão ligados dois deveres iniciáticos: conhecer as causas espirituais da realidade não manifestada e agir materialmente, de modo canónico, sobre os efeitos da manifestação; mais sinteticamente: saber, em potência e operar, em acto. A divisa alquímica ora et labora é, neste aspecto, exemplar.
Nas várias disciplinas iniciáticas de manipulação ou transmutação da Natureza, cabem praticamente todos os arquétipos da actividade humana, desde as artes e ofícios ao exercício da guerra1; no entanto, devido ao âmbito em que incide a sua acção, Alquimia e Maçonaria2 encontram-se em grande proximidade.

PEDRA DE OBRA E PEDRA OCULTA

A pedra que o construtor toma para ser afeiçoada e integrada no edifício, corresponde ao lapis que constitui a matéria prima a manipular no matraz.
Porém, quer uma quer outra, independentemente da utilidade material de que possam vir a revestir-se, representam o aspecto mais exterior da Obra ou seja: apresentam-se apenas como resultado de uma acção exercida, pelo oficial, sobre a manifestação. Esse resultado, em tudo semelhante ao efeito do espelho, projecta na manifestação princípios não manifestados, estes de carácter eminentemente interior.
Assim, pode afirmar-se que, a pedra visível e palpável sobre a qual opera o manipulador, é a manifestação de uma pedra oculta, invisível e impalpável. Esta pedra - causa espiritual - determina e condiciona a pedra da Obra - efeito material. Entre elas, como elemento de ligação mediando dois mundos e duas ordens de realidade, o operador realiza a acção perfeita que é a de representar materialmente, na manifestação, o sentido e a ordem transcendente, numa acção dupla e simultânea, impregnando a matéria de espírito e dando corpo à espiritualidade, conforme a regra solve et coagula.
Dissolver o fixo e fixar o volátil eis o permanente labor do alquimista e do maçon. O primeiro reproduz no vaso o drama cósmico da Criação, de modo a rectificar a pedra material, marcada pelo estigma da Queda, de modo a fazer dela um reflexo perfeito da pedra oculta. O segundo toma a pedra inútil e rectifica-a de modo a que ela possa ser parte corporal do Templo, ganhando nessa metamorfose uma condição espiritual que a sua imperfeição nativa não permitiria. Espiritualizar a substância dando substância ao espírito, eis o ofício do manipulador perfeito, com mandato iniciático para o seu labor.

ESTADOS DA PEDRA NAS NOMENCLATURAS SIMBÓLICAS

A Tradição distingue dois géneros de pedra sagrada ou sacralizada: os aerolitos - porque oriundos do Céu, com todas as consequências simbólicas dessa origem - e as pedras de Obra ou seja, as que são objecto de manipulação iniciática. O aerolito, correspondendo a uma descida de um princípio celeste à manifestação terrestre, tem por complemento o bétilo, representando uma subida de um elemento terrestre à espiritualidade celeste.
No caso presente, interessa-nos exclusivamente a pedra manipulada canonicamente que, tendo no bétilo o seu arquétipo, constitui sempre um modo recíproco de espiritualizar a substância, materializando o espírito.
Tomando como dupla referência as tradições hermética e maçónica, estabeleçamos as analogias entre a pedra alquímica, enquanto matéria prima da Obra, e a pedra do construtor, enquanto módulo individual do Templo. Partindo deste princípio, consideremos, analogicamente as fases fundamentais da Obra do alquimista e do maçon.
A fase hermética do nigredo, em que a matéria escolhida é "carbonizada" destina-se a provocar a sua morte física - putrefacio - condição primeira para um eventual renascimento in gloria. Marcado pelo luto das trevas, este momento constitui uma "paixão" no sentido teológico do termo. Tal dissolução morfológica destrói a escória corporal, tomando a massa um aspecto cadavérico. Não obstante, sob tal aparência, algo palpita no seu interior, indicando que a morte é um mero efeito iniciático e não uma causa absoluta.
Bem assim, a Pedra Bruta maçónica é negra e sobre ela se faz o primeiro trabalho do recém iniciado que, vindo das trevas mortais em que todo o homem nasce, viu uma réstia da luz, ao terceiro "golpe". Esta pedra disforme, aparentemente inerte, guarda igualmente, em si, o germe modular de uma metamorfose. Aprendendo de pronto os ensinamentos da Iniciação, o novo Aprendiz transmite à Pedra Bruta , por três "golpes", a luz que do mesmo modo lhe foi dada. Com isto, torna dúctil a morfologia áspera do mineral, transmitindo-lhe um sopro do espírito, como prelúdio de uma fase mais avançada da Obra.
O albedo hermético tem o seu tempo quando a escória negra da pedra calcinada apresenta, em alguns pontos, o brilho do diamante negro. É o sinal de que o cadáver se anima de uma insuspeitada vitalidade. Trata-se, então, de libertar essa emanação de todo o carvão que a envolve, de forma a que, devidamente purificada e isolada, ganhe o esplendor brilhante da neve, um fulgor de alvura e de pureza dificilmente atribuível à natureza, no seu estado nativo. Ao corpo renascido juntou-se agora uma "alma".
Essa brancura é também emblemática da Pedra Cúbica, na qual o Companheiro maçon aplicou a sua Arte purificadora. A escória que enegrecia o minério e lhe dava uma forma caótica, foi desbastada até se obter a perfeição do cubo, entidade geométrica associada à volumetria das quatro, das seis e, potencialmente, às sete direcções do espaço, ou outras tantas qualidades arquétipas da realidade. Agora, a pedra é uma fonte de conhecimento e ensinamento.
Mantendo um regime de fogo e tempo, que a Alquimia tem por adequado, a pedra alva ganha novas coloração e alcança o rubedo. Não há - dizem os manipuladores afortunados - nenhum vermelho na Natureza que se assemelhe ao esplendor rubro dessa matéria sublime. Alegoricamente ela é a coroa real de toda a Obra; o ponto mais alto a que o artista dedicado esperaria chegar. A partir de então já nada se pode acrescentar ou subtrair à pedra excelsa. Espírito e matéria são uma só coisa.
Também a Pedra Cúbica de Ponta deve ser representada a vermelho. À perfeição do quadrado, foi adicionada a natureza divina do triângulo; ao cubo do espaço veio juntar-se a pirâmide de tempo. Depois de muito labor e meditação o Mestre maçon alcançou, também ele, a coroa da sua Arte, produzindo uma pedra em que se consubstanciam o Céu e a Terra, numa única e nova natureza.

OUTRAS PEDRAS COINCIDENTES

A Pedra Filosofal alquímica, constitui uma particularidade contida na natureza da Pedra Rubra, do mesmo modo que a Pedra de Chave maçónica representa uma especificidade incluída no contexto geral da Pedra Cúbica de Ponta. A primeira reporta-se a um sentido temporal de eternidade - a sua posse equivale, alegoricamente, a viver-se para sempre, livre de doenças e da morte. A segunda está associada à ideia do espaço infinito - sendo ela o remate central da abóbada do Templo, o que equivale a dizer-se a abóbada celeste, constitui o suporte do Universo3.
A Maçonaria conhece ainda a Pedra Angular ou de Fundamento, cornerstone cuja implantação, no início de uma obra de edificação, é praticada mediante um rito próprio que, na versão profana da construção civil, foi substituído pela cerimónia do lançamento da "primeira pedra". Tal rito está ligado à ideia de início; primeiro impulso, em tudo conforme com o simbolismo de Janu a divindade latina propiciadora de todos os começos, já que presidia à porta que mediava entre o fim de um ano e o começo de outro, numa clara alusão ao carácter solsticial desta entidade4.
Como se depreende, o simbolismo desta pedra remete para a matéria prima inicial da Obra, seja ela a Pedra Bruta ou a substância escolhida para a manipulação alquímica.

COINCIDÊNCIAS RELIGIOSAS

A corrente religiosa cristã, a cuja tradição estão associadas praticamente todas as modalidades ocidentais da Arte Real, incluindo a Alquimia e a Maçonaria, tem na pedra uma das suas principais figuras simbólicas. De resto, o simbolismo da pedra é universal, particularmente nos povos sedentários e, sobretudo, devido à unidade da Tradição Primordial, de onde provêm todas as tradições particulares.
De um modo geral, uma pedra é tomada como símbolo de um homem, em termos individuais, enquanto o conjunto ordenado de pedras - o Templo - simboliza o colectivo da Humanidade.
Pedro foi chamado a tornar-se a pedra de fundamento da futura Igreja já que, do ponto de vista pastoral, a pedra perfeita personificada pelo sucessor de Cristo, serviria de modelo às outras pedras formadas pelo colectivo dos crentes, sendo a Igreja o próprio conjunto assim formado.
Recorde-se, por outro lado, o anúncio evangélico de que o Templo derrubado seria reerguido em três dias, correspondentes à paixão, morte e ressurreição de Cristo e, bem assim, às três fases da Obra hermética e aos três tempos da mestria maçónica.
Estas consonâncias entre conteúdos religiosos e iniciáticos nada têm de estranho e não configuram de modo algum um contencioso hierárquico entre as duas instituições. A via da fé e a via da Iniciação correspondem a caminhos paralelos, oriundos de um princípio comum. Tal identidade é particularmente notável no cristianismo, devido à componente de acção evangelizadora que o caracteriza ou seja: do mesmo modo que a Arte Real - como modelo iniciático por excelência - manipula canonicamente o mundo manifestado com vista à sua rectificação, o cristianismo actua sobre a manifestação humana em ordem à sua espiritualização.
A corrente cristã apresenta, na sua origem, um claro sinal do que os elementos do princípio real e activo são nela predominantes sobre os elementos do princípio sacerdotal e contemplativo. Jesus nasce sob a égide do Leão da Casa Real de Judá, de tradição guerreira e não no seio das tribus de vocação sacerdotal, nomeadamente a de Levi.
Esta origem - sempre observada pelas ordens da Cavalaria Espiritual do Ocidente - cria uma consonância exemplar entre tradição religiosa e tradição iniciática. O moderno contencioso que opõe a Igreja a certas modalidades de Iniciação não passa de um mal entendido, proveniente do obscurecimento espiritual de certas organizações que, ancestralmente designadas por iniciáticas apresentam, doutrinariamente, todos os sinais da contra iniciação, devido ao seu alinhamento com as fórmulas do racionalismo e do ateísmo militante.
Estas breves notas limitaram-se a aflorar uma temática que, como se compreende é vastíssima. Neste sentido, o único objectivo a que aqui nos propusemos foi o de despertar o interesse do auditório para um estudo pessoal e aprofundado sobre o assunto.

Carcavelos, Julho de 2002
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1. Embora diversa das modalidades ligadas aos ofícios, a Iniciação própria da Cavalaria Espiritual e que cumpre o oficialato da guerra, inclui-se no conjunto da Arte Real, onde representa uma forma activa por excelência.
2. Referimo-nos, como é evidente, à modalidade operativa da Maçonaria, já que, na sua modalidade especulativa, a Ordem não se dedica ao exercício de um mister específico, ligado à pedra e à construção, em geral.


3. Evidentemente, referimos eternidade ou infinito como meras forças de expressão já que, num e noutro caso, conviria mais, em rigor, falar de tempo ou espaço indefinidos.

4. Não sendo agora oportuno alongarmo-nos neste tema diga-se apenas que Janu era patrono dos fabrorum romanos, corporação clássica de construtores, integrada na linha ancestral da Maçonaria operativa. Por outro lado, sendo a Janu consagrado o mês de Janeiro, corresponde-lhe, na cristandade, com o mesmo carácter solsticial, S. João Evangelista, um dos patronos da Maçonaria moderna, de par com o - também solsticial - S. João Baptista.

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