sábado, 10 de abril de 2010

VIEIRA - O VERBO E A LUZ, no Mosteiro dos Jerónimos


UM OLHAR SOBRE A EXPOSIÇÃO DE CARLOS DUGOS
Arnaldo do Espírito Santo

1. Um triplo Vieira, sobre fundo azul-escuro, no púlpito em acto de pregar. Um só Vieira desdobrado em três, graças ao jogo de mãos, ao movimento do corpo, à expressão do rosto. Um só Vieira que se multiplica em gestos de exposição, argumentação e persuasão, como se o pregador personificasse a pregação que definiu todo o seu percurso biográfico. O púlpito desdobrado em três espaços onde exerceu o ministério da sua palavra: o Brasil, o Reino, Roma teatro do mundo. O gesto é de pregador que representa uma actio, uma acção empolgante.
Mas é também o triplo Vieira dos três discursos: o parenético, o político, o profético. Em todos os aspectos ressalta a intensidade de uma visão que se projecta intensamente aqui e além.
2. O segundo quadro é uma representação do V Império, extremamente rica de ideias e sugestões. Uma janela divide a visão, ou antes projecta-a. Duas margens, a do Velho Mundo e a do Novo. De um lado os símbolos da paz a da abundância, a pomba e a cornucópia; do outro, o da justiça, a balança. Três dos atributos mais anunciados por Vieira para o V Império, em movimento de aproximação vindo do céu e projectando nas águas do mar uma estrada de luz. A luz ou brilho do ouro da eternidade. O ambiente dessa sensação de mistério e de perenidade irradia do jogo quase monocromático das variantes do azul profundo. Ao centro, bem ao centro, o universalismo, representado também com um toque de nacionalismo sob a forma da esfera armilar. A encimá-la o V, que deve ser lido como numeral romano. A ouro, porque será a porta para o tempo do sábado sem ocaso, o fim dos tempos.
3. Quatro círculos, em segundo plano, representam os quatro impérios que se sucederam na história humana. Três numerados por I, II, III, são respectivamente o da Babilónia, o da Pérsia, o da Grécia/Macedónia. O de Roma está simbolizado pela águia imperial e pela epígrafe SPQR: Senatus Populusque Romanus, O Senado e o Povo Romano. Ao centro o quinto círculo que se sobrepõe a todos. A janela a ouro para o além, a estrela de oito pontas com a rosa ao meio, símbolo da divindade, que habita no último dos céus, imaterial, imóvel e invisível. Vieira passa por todos esses conceitos ao longo da sua obra, com uma reminiscência que vai dos profetas bíblicos ao mundo pitagórico das esferas celestes. Nada disso foi inventado por Vieira, mas tudo isso está nele e por ele foi desenvolvido.
4. Mas assim como, diz Vieira, o povo de Israel sofreu por suas infidelidades o cativeiro e o exílio sobre os Rios de Babilónia, assim o segundo povo escolhido, que é o português, após um período de purificação, será restaurado para dar nascimento a um império ainda maior, em que todos os povos serão reunidos como um rebanho sob um só pastor. As dez tribos de Israel, as do Reino da Samaria, que nunca regressaram do exílio, desaparecidas em lugar incerto, hão-de voltar para fazer parte desse concerto de unidade universal. Isso diz Bandarra, profeta da Restauração e do Quinto Império, cujas trovas são assumidas por Vieira que as eleva à categoria de profecias verdadeiras e fidedignas como as dos Profetas bíblicos. Dez estandartes têm, cada um deles, gravados em hebraico os nomes da respectiva tribo. Da direita para a esquerda, no plano inferior: Gad, Simeon, Zabulon, Joseph. Aser, Isachar, Levi, Dan, Nepthali, Ruben, cada uma com os seus respectivos símbolos. No centro de cena, S. Vicente (uma figura que é uma citação explícita da figura de S. Vicente dos painéis de Nuno Gonçalves) faz a apresentação ao Papa, simbolizado pela tiara e pelo báculo pontifício, das dez tribos encontradas e da sua conversão ao rebanho de Cristo. Esta é, já realizada, uma parte do bandarrismo de Vieira e do Quinto Império Português, que tem como epicentro político a cidade de Lisboa.
5. O Messianismo português é uma herança cultural que Vieira assumiu. A sua expressão, não a única, mas sem dúvida a mais forte, personificou-se no Sebastianismo. Alcácer-Quibir lhe deu origem. Em simbolismo quase narrativo, as areias do deserto; os cavalos e o rei derrubados; a esfera armilar por terra; o escudo português segurado por dois anjos decapitados; uma moldura que embacia a memória e a realidade, num jogo vincado de tons, de linhas e de luz. Do símbolo à narração, e da narração à sensação de incomodidade, ou à ideia do império interrompido.
6. O Regresso de D. Sebastião, que bem pode ser uma representação figurada de D. João IV. Trata-se de facto de uma espécie de metamorfose do Sebastianismo em Joanismo. O Leão de Castela dominado, como profetizou Bandarra, sugere essa leitura. O barco do regresso a surgir do nevoeiro e a fidelidade do povo português representada no cão. Os símbolos são expressivos. Mas há sempre algo mais que o olhar encontra. E sobretudo algo de indefinido no azul profundo que se articula quadro a quadro, criando unidade temática subjacente à escolha da cor e do jogo da luz.
7. Um díptico de luz, as duas tábuas dos dois testamentos, que são também portas de acesso ao espaço de mistério oculto sob o azul-escuro, opaco, impenetrável à visão humana e ao pensamento. Um espaço de azul menos carregado define um V de Quinto Império. Do Oriente e do Ocidente chegam os Reis profetizados por Isaías. Os três do Oriente são portadores dos tradicionais presentes do ouro, incenso, e mirra; do ocidente três reis portugueses, oferecem o mundo descoberto, sob a forma da esfera armilar, um padrão dos descobrimentos e uma caravela. Foi condição necessária para a implantação do V Império é universal, contará com a presença de todos os povos.
8. Uma aparente interrupção nesta sequência leva-nos à vida de Vieira. O naufrágio ao largo dos Açores, quando vinha do Maranhão para Lisboa a fim de obter do Conselho do Rei uma disposição que consagrasse novas regras para a evangelização e a salvaguarda da liberdade e da dignidade dos Índios, integra-se de facto no mesmo objectivo pois a missão que Vieira então se propunha cumprir é uma das condições necessárias para a consumação do Reino de Cristo. A inclinação do mastro principal corresponde à descrição que é feita pouco depois do Naufrágio no sermão de santa Teresa, pregando na Igreja do Colégio Jesuíta de Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel.
9. No quadro da Senhora do Ó está todo o pensamento do Padre Vieira, tecido em luz, formas e cor. Luz nascente como a da aurora emoldurada em cor de noite profunda. Projectada no sol, a Senhora do Ó. É esta talvez a mais esplendorosa destas dez sínteses da pessoa e da obra de Vieira, dele, da sua espiritualidade profundamente mariana, da sublimação do feminino, de um advento que está próximo, de uma expectação que é eco de um anseio que se ergue do fundo do tempo. Naquela grande bola de luz, que é plenitude do tempo e da eternidade, do humano e do divino, ressoam as evocações das sete antífonas maiores, todas elas começadas por Ó: Ó Sapiência; ó Adonai; Ó raiz de Jessé; Ó Clavis de David; Ó Oriente, esplendor da luz eterna; Ó Rei dos gentios; Ó Deus connosco. Antífonas do Ó, que dera, o nome à senhora do ò, ou Senhora da Expectação. São sete ‘Ós’ que resumem todo o indizível, todo o anseio messiânico e profético de que Vieira foi porta-voz. Tudo isto é oferecido ao olhar de um só fulgor, de um só flash de uma suavidade imensa, que concentra em si toda a esperança do que há-de vir. Se a exposição fosse apenas este quadro, tudo estaria nele, pois nele se encontram os dois povos, o dos Judeus e o dos gentios – Ó Adonai, Ó Rei dos Gentios -, que se juntarão num só Reino ou Império, o quinto da História humana.
10. Santa Teresa de Ávila, mulher e Santa, é uma presença constante na obra de Vieira e na sua espiritualidade, na persistência e no zelo com que se devotou à salvação das almas. Foi no dia de santa Teresa que escreveu, e fez questão de dizê-lo, uma bela página da Clavis Prophetarum, Chave dos Profetas, onde se lhe refere como «milagre da mão do Omnipotente». O que o impressionou em santa Teresa foi «o levar ao fim pretendido as obras espirituais, sobretudo as de interesse geral e que visam a maior glória de Deus, quando se opõem os príncipes do século.» Vieira revia-se nestas palavras. Mais uma vez os tons de azul, a projecção, no além, de uma figura sentada; as muralhas de Ávila; a paisagem e o nascer do sol; todos esses elementos definem um ambiente de presença de algo indefinível que se adivinha. O ornamento da balaustrada é mais um pormenor nesse halo místico de todo o quadro. No plano inferior, o tema da vigília reforçado pela evocação das cinco virgens insensatas, à direita, de candeia apagada, e das cinco prudentes, de candeia acesa, pormenor que é dado pelo jogo da luz, um dos mais belos efeitos artísticos de todos os quadros.


ARNALDO DO ESPÍRITO SANTO
(Universidade de Lisboa)

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